VIVER - MEMÓRIAS SOLTAS
Enquanto
criança e adolescente, passava todos os verões no Barlavento Algarvio, na
Meia Praia em Lagos. Os dias de mar, sol e sul eram enormes, tal como
a fome que chegava com a hora de voltar para casa, ao anoitecer, em que das provisões
que a minha mãe tinha preparado já nada restava a não ser o vazio da mala
térmica. Por vezes, era costume levar umas belas fatias
de pão algarvio com manteiga corada, de que apenas comia o miolo, renegando as
côdeas, que a minha mãe guardava, por me parecer que a sua aparência pouco sedutora
teria paladar correspondente, enfim, idiotices da idade. No entanto, num desses finais de dia, a fome
era tanta que, se me tivessem acenado com um dos famosos D.Rodrigos vendidos na
casa Taquelim, saía
apressadamente da Meia Praia, eu teria
atravessado a correr a longa praia de
areia branca e fina para o ir buscar.
Como não se vislumbrava que tal acontecesse, e eu ainda não queria ir para
casa, não tive alternativa a não ser engolir o orgulho – que também não enche
barriga – e ir perguntar à minha mãe: O que há para a merenda?
Dias infinitos, enormes, até o último chegar.
No último dia de cada uma dessas férias à beira-mar, à beira-mim, antes de a
Viseu regressar, ia despedir-me da praia. Ia até ao extremo nascente de Lagos onde existe o Forte
da Meia Praia e olhava para o rio, onde sua foz se situa a meio da
baía de Lagos dividindo-a em duas grandes praias: a Meia Praia e a Praia de
Alvor. Este maravilhoso rio a entrar no mar ou para o mar a ganhar o rio, não sei
bem, e depois fechava os olhos, tentando guardar aquela imagem, ainda fresca,
na minha memória. Se fizesse assim, se guardasse as imagens ainda frescas,
talvez enganasse o tempo e a distância. A própria memória. Sempre tive medo de
ser atraiçoada pela memória. Abria os olhos a seguir e confirmava se nada tinha
escapado, se a memória era fiel à paisagem. Queria-a intacta. Inteira. Depois, ia
até ao areal, sentava-me, enterrava as mãos na areia e levantava-as depois mãos
cheias até ficarem vazias. A areia não fica muito tempo, como aliás muita coisa
na vida. E pensava «Agora estou aqui, mais logo já não estou. Não estou aqui e
é aqui que estarei.» Voltava a fechar os olhos e o som do mar era o singular facto
que eu via. Às vezes, penso que escrever é isto. Ver sem ver,
tentar que nada escape, dar lugar à memória, não perder o lugar na vida.
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